quinta-feira, 23 de maio de 2024

____


Gol de Motorzinho

“O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé.

É fazer um gol como Pelé”

Carlos Drummond de Andrade


                    Seu apelido era Motorzinho por causa da velocidade e eficiência com que se deslocava em campo. Do tamanho do mosquito, driblava os adversários como uma raposa fugitiva. Jogava futebol despistando a vida, e fugindo da pobreza da infância. Suas pernas, pequeninas, finas como dois gravetos, corriam pelos campos do sertão livrando-se de marcadores violentos. Nunca houve, lá pelas canchas vizinhas ao Raso da Catarina, um ponta-direita ou mesmo um volante, como ele. Com destreza rara, criava jogadas lúdicas que desarticulavam rivais. Uma delas formava um triângulo imaginário e mágico, bela seqüência de passes rápidos, um só toque na bola, um, dois; a bola rente ao chão, rolando de pé em pé, ia e vinha como se fosse amestrada, submissa, dócil e fiel. Os adversários desorganizavam-se, o público delirava. A esse momento encantador que o futebol proporciona, a essa envolvente troca de passes ele apelidou de “curri-curri”.            

                    Seu gol mais bonito foi feito no pequeno estádio de Antas, contra a equipe do Vitória.  Muitos sertanejos o viram, todos juram que estavam lá. Naquele jogo ele repetiu a mesma jogada várias vezes, antes de realizar um dos mais belos lances que o Sertão já viu. Com a bola colada aos pés, desde o meio do campo, ele partia para cima do lateral Gato Preto. Por conta de uma ginga infernal, fazia que sim, fazia que não, ameaçava ir por um lado, ia pelo outro, enquanto a bola, cúmplice, esquivava-se do lateral. Alcançava-a lá na frente, dominava-a rapidamente, deixando aquele marcador bem atrás. Alguns chamam essa finta de meia-lua, outros de “drible da vaca”. Ele a apelidou de “arruda”. 

                    Aquela jogada cruel para cima do Gato Preto incomodava os jogadores do Vitória. Nelinho, o excelente centromédio do time rubro negro, resolveu acabar com a festa. Diziam que por ele nada passava. O gargalo que barrava todas as tentativas adversárias. Então, numa arrancada fulminante, Motorzinho partiu novamente para cima do Gato. Nelinho anteviu a jogada, e preparou-se para dar o bote no lance: pôs-se alinhado, a uma distância adequada, por trás do lateral. Toinho percebeu a manobra e repetiu o mesmo drible anterior: foi pela esquerda e tocou a bola pela direita, ultrapassando Gato Preto e Nelinho numa única e longa meia-lua. Como ele mesmo diz: 

                             - Dei um “arruda graúdo” nos dois, um “arrudinha” no goleiro e entrei com bola e tudo. 

                               Uma noite ele tomou algumas cervejas, e pendurou as chuteiras. Colocou-as num prego cravado na cumeeira do oitão de sua casa. 

                              Deixou o futebol. 

                              Mas ainda hoje, lá no Sertão, as crianças se divertem fazendo o “curri curri”.

Sílvio Monteiro

Salvador, março de 2007.